Segesta Editora

Artigos

REVISTA Soc. Bras. Economia Política. Rio de Janeiro, nº 19, p. 125-129, dezembro 2006.

CLAUS M. GERMER
Universidade Federal do Paraná - UFPR

Resenhas
MONTANARI, Geminiano. Tratado mercantil sobre a moeda (1683).
Curitiba: Segesta, 2006, 225 p.

Com o lançamento do Tratado mercantil sobre a moeda (1683), de Geminiano Montanari, a Editora Segesta, de Curitiba, dá seqüência ao extraordinário projeto editorial de publicar no Brasil obras fundamentais da história do pensamento econômico, ainda inéditas no nosso país.

Montanari, importante astrônomo do seu tempo, integra também um grupo de economistas italianos que, entre os séculos 16 e 18, produziram contribuições fundamentais principalmente para a explicação dos fenômenos monetários 1. Davanzati, Montanari e Galiani são os mais conhecidos, cada um deles marcando, com a sua obra, o pensamento monetário italiano de um século: Davanzati o século 16, Montanari o 17 e Galiani, o 18. As suas obras constituem fases de uma progressão das concepções sobre o valor e o dinheiro, sendo por isto compreensível que entre eles tenha conquistado maior destaque o último, Ferdinando Galiani, cuja obra máxima é Da moeda (1751). Embora Schumpeter revele maior admiração por Davanzati, argumentando que Montanari nada acrescentou de essencial à análise do primeiro, a obra de Montanari impressiona pela amplitude que já alcança, pela visão do capitalismo como um sistema mundial, e pela agudeza das suas concepções sobre os fenômenos da circulação monetária.

O Tratado mercantil sobre a moeda (1683), de Montanari inscreve-se entre as obras pioneiras na análise dos fenômenos monetários marcadas decisivamente pela revolução de preços causada pelo grande afluxo de ouro e prata da América para a Europa, e ao mesmo tempo limitadas pelo desconhecimento de elementos essenciais da esfera monetária, que só se revelariam ou seriam descobertos bem mais tarde. Por outro lado, a formação dos Estados nacionais e dos correspondentes mercados deu origem a fenômenos monetários graves e de origem então desconhecida, que ocuparam a imaginação de um número crescente de pensadores e estadistas.

Os pontos de apoio de Montanari em obras anteriores, no campo monetário, são poucos, com destaque para Davanzati e Bodin. O problema que Montanari se propõe enfrentar, explicitamente, é o que designa por "elevação do valor das moedas", uma "enfermidade política dos estados" (p. 15), que já havia alarmado Davanzati (1588). Curiosamente, a expressão "elevação do valor das moedas" exprime na realidade o contrário, isto é, a redução do seu valor através da redução do seu conteúdo metálico. Para compreendê-lo, deve-se ter em mente que o padrão monetário, estabelecido pelo Estado, era definido como determinada quantidade do material monetário. Suponhamos, por exemplo, que um ducado (moeda de ouro da época) correspondesse a uma onça de ouro. A maior parte da circulação monetária, porém, era constituída por moedas divisionárias, isto é, representando uma fração do padrão monetário. Suponhamos que o ducado fosse subdividido em 20 moedas, cada uma pesando 1/20 de onça. Estas moedas desgastavam-se na circulação (pela fricção ou por fraude), de modo que, gradualmente, o seu peso real diminuía em relação ao seu peso original, determinado pela lei, ou seja, o seu valor nominal mantinha-se, enquanto o seu valor real se reduzia. Na circulação interna este "emagrecimento" das moedas não causava grande problema, uma vez que eram aceitas pelo seu valor nominal, o que é compatível com a função de meio de circulação. Mas nas transações externas as moedas eram avaliadas não pelo seu nome, mas pelo peso que representavam. Assim, os importadores, na revenda interna das mercadorias importadas, recebiam em moedas de valor real menor que o nominal, mas deviam pagar as importações com moeda de peso real correspondente ao peso nominal. Com isto os preços de revenda das importações, em moeda doméstica, eram corrigidos para cima, ou seja, o mecanismo dos preços reduzia, via inflação, a moeda ao seu verdadeiro valor.

O resultado disto era que a quantidade de ouro correspondente ao ducado original já não era representada por 20 moedas circulantes. Devido ao desgaste natural das moedas, o ducado original passava, por exemplo, a ser representado por 25 moedas. Em moeda corrente, a moeda representando o ducado original teria aumentado de valor. É este o fenômeno que, na época de Montanari, se designava como "elevação do valor das moedas", mas que ele interpreta, corretamente, como expressando a redução do valor da moeda divisionária, isto é, do seu conteúdo metálico (p. 99, 103). O mesmo efeito ocorre quando o Estado, premido por dívidas excessivas, emite moeda de peso inferior ao padrão oficial, ou quando a moeda divisionária é cunhada em metal de valor inferior ao do metal-padrão, caracterizando um padrão bi-metálico, cujo exemplo clássico é o padrão ouro-prata. Quando a moeda principal é o ouro e a divisionária é de prata e se desgasta, a moeda principal passa a converter-se em uma quantidade de moedas de prata maior do que a prevista na lei, ou seja, diz-se que "se valoriza", quando na realidade é a moeda divisionária que se desvaloriza.

Este é o fenômeno analisado por Montanari ao longo da sua obra, recheada de exemplos práticos extraídos predominantemente da experiência das cidades-Estado italianas da sua época. Estes exemplos são de difícil entendimento para o leitor de hoje, devido em primeiro lugar ao grande número de nomes de moedas, nomes que soam extravagantes atualmente (por exemplo, baioco, bilhão, dobra, marca, óbolo, parpalhola, etc.), e, em segundo lugar, à inexistência de indicação exata do tipo e da quantidade do material monetário que constitui cada uma. O glossário, no final da obra, embora muito informativo, não satisfaz inteiramente a necessidade de esclarecimento, devido à falta dos detalhes necessários, citados acima. O ideal seria um anexo no qual constassem os tipos e pesos dos metais de que eram feitas as diversas moedas na época de Montanari. O leitor poderia, neste caso, entender mais facilmente as conversões monetárias apresentadas pelo autor.

A principal causa da "elevação do valor das moedas", segundo Montanari, era "a alteração da proporção universal entre o ouro e a prata", isto é, da proporção geralmente respeitada (p. 163). Esta proporção de valores correspondia, segundo o autor, à proporção entre as quantidades existentes de ouro e prata e não entre os seus custos de produção. Sendo assim, a proporção de valores altera-se sempre que a proporção das quantidades se altere (capítulo 4). Quando esta proporção não é respeitada na definição legal das moedas pelo Estado, ocorre o problema da "elevação do valor das moedas". A maior parte do livro consiste na exposição dos diversos problemas acarretados por este fenômeno, ilustrados com abundantes exemplos.

Nos capítulos iniciais Montanari procura estabelecer os conceitos fundamentais necessários à sua análise. Começa por definir a moeda como "qualquer metal ou outra coisa que, cunhada ou autenticada de outra forma pela autoridade pública, serve como preço e medida das coisas passíveis de ser vendidas, para facilitar o comércio" (p. 28-29). Neste ponto diverge e retrocede conceitualmente em relação a Davanzati (1588) que, ao considerar moeda apenas a que fosse feita de ouro, prata ou cobre, que denomina "dinheiro universal", distingue este dos meros símbolos de valor que funcionam como meio de circulação. Para Montanari a essência do dinheiro é ser "autorizada pelo príncipe", considerando ser "a autoridade do príncipe a única e verdadeira forma que dá existência à moeda, seja qual for o material com que é confeccionada" (p. 30). No capítulo 2 define o valor como expressão dos desejos e das necessidades humanas, expressos nos preços por intermédio do dinheiro. O grau da necessidade determina o grau do desejo e este se expressa no valor monetário. No capítulo 3 acrescenta a raridade como determinante do valor. Na medida em que, para Montanari, o valor das mercadorias é diretamente proporcional ao desejo por elas e inversamente proporcional à sua abundância, pode ele ser considerado precursor da teoria subjetiva do valor, no que foi seguido, com maior elaboração, por Galiani.

Montanari filia-se à concepção quantitativista proposta por Bodin. Ele parte do princípio de que "todos os bens que se encontram no comércio, juntos, valem tanto quanto todo o ouro e a outra moeda que circulam nesse mesmo comércio com a finalidade de comprá-los", de modo que, "quanto maior for a quantidade de moeda que circula no comércio (...) proporcionalmente às coisas passíveis de ser vendidas aí existentes, tanto mais caras serão estas" (p. 39). A relação de valor entre o ouro e a prata, exposta no capítulo 5, segue o mesmo princípio: a relação de valor entre eles é expressa pela relação das quantidades existentes dos dois metais. Assim, explica o aumento da relação prata/ouro de 12 para 15, em pouco mais de um século desde a publicação da obra de Bodin, com o fato de que a prata se tomou mais abundante relativamente ao ouro (p. 73).

No capítulo 7 Montanari analisa o importante papel desempenhado pelos meios de circulação de baixo valor (a moeda divisionária), e os problemas resultantes da sua emissão pelo Estado, derivando as regras gerais que esta emissão deveria seguir. Ao relacionar a forma-moeda à circulação doméstica, em oposição à forma-dinheiro nos pagamentos externos, ele distingue, sem o explicitar, a função de meio de circulação da função de meio de pagamento. Na sua análise, conclui que o meio de circulação pode ser composto por qualquer material, mesmo papel, mas atribui o seu valor à "autoridade do príncipe", ao invés de derivá-lo da fração do dinheiro que ele representa. Estas definições são coerentes com o seu conceito do dinheiro, exposto acima: assim como é a autoridade do Estado que estabelece os valores das moedas de ouro e prata (respeitada a proporção entre os dois metais), é também ela que estabelece os valores do meio de circulação. Com base na distinção implícita entre o dinheiro e o meio de circulação, Montanari distingue, para as moedas, "dois tipos de valor: o intrínseco e o extrínseco. O intrínseco baseia-se na quantidade de metal fino que contém; o extrínseco, na autoridade do príncipe" (p. 76, 103). As moedas de valor extrínseco, ou seja, cujo valor nominal não corresponde ao real, são denominadas "imaginárias" pois, "embora mantivessem o mesmo nome, não continham (...) aquele valor nem aquele peso que seu nome indicava" (p. 93). Estes mesmo conceitos estão presentes ainda na obra de Galiani.

Na maior parte da sua obra Montanari examina as conseqüências geralmente danosas da não observância da correta proporção entre o ouro e a prata, que é aquela "que vige comumente entre os mercadores". Estas conseqüências danosas atingem a todos, inclusive ao Estado, que a curto prazo se beneficia de emissões exageradas do meio de circulação depreciado.

Finalmente, nos capítulos 18 e 19, Montanari indica, como prometido no preâmbulo, os remédios para o problema que analisa. São dois os remédios: primeiro, "ao estabelecer o valor das moedas de ouro e prata se deve observar a proporção que vige mais comumente num determinado lugar" (p. 183); segundo, as moedas devem ser "das mais perfeitas e puras em seu metal" (p. 196), isto é, devem ser feitas com metais de maior grau de pureza possível.

Claus M. Germer Universidade Federal do Paraná - UFPR

Referências bibliográficas
DAVANZATI, B. (1588). A Discourse Upon Coins.
http://www.yale.edu/lawweb/avalon/econ/coins.htm, extraído em 27/10/06.

MARX, K. (1859). Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977.

SCHUMPETER, J.A. History of economic ana/ysis. Edited from a manuscript by E.B. Schumpeter. New York: Oxford University Press, 1954.

Nota
1 Tanto Marx quanto, mais tarde, Schumpeter, deram grande crédito às contribuições dos economistas italianos no período mencionado (Marx, 1859, p. 57, 109, 151). Segundo Schumpeter, “the ltalian literature on money, (...) throughout the period kept a higher leveI than any other" (SCHUMPETER, 1954, p. 292)

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