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REVISTA Soc. Bras. Economia Política, Rio de Janeiro, n° 23, p. 137-142, dezembro 2008.

JOÃO ILDEBRANDO BOCCHI — Professor Titular do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Resenhas
MELO, Francisco Manuel de. O escritório avarento (1655) e MACEDO, Duarte Ribeiro de. Sobre a introdução das artes (1675). Curitiba, Segesta, 2007, 138 p.

A Editora Segesta apresenta aos leitores brasileiros as obras de dois importantes representantes do pensamento econômico português do século XVII. Depois de publicar autores como Galiani, Cantillon, Serra, Oresme e Montanari, a Segesta nos apresenta a obra de Manuel Francisco de Melo, O escritório avarento, um apólogo entre moedas que falam e discutem o que fazer com o dinheiro: encarcerá-lo (entesourá-lo) ou aplicá-lo produtivamente, comprando trabalho? Já Duarte Ribeiro de Macedo, jurista e diplomata, considerado um dos principais autores portugueses do século XVII, em Sobre a introdução das artes, sua mais importante obra, discute porque ocorre a saída de dinheiro (ouro) do reino de Portugal, devido às importações maiores que as exportações. A solução para a saída do dinheiro é a introdução das artes (manufaturas) no Reino! São duas obras que nos mostram dois autores que conhecem a teoria e a prática da economia política, e escrevem no momento em que Portugal, recém saído da Restauração de 1640, perde o domínio sobre o Golfo Pérsico, e assiste à conquista holandesa do Cabo da Boa Esperança. O período 1640-1675 é exatamente aquele em que surge e se consolida a subordinação estrutural de Portugal com relação à Inglaterra. No século XVII o mercantilismo está no auge, com a publicação do Discurso sobre o comércio inglês com as Índias Orientais de Thomas Mun, em 1621, e a assinatura do Ato de Navegação por Cromwell, em 1651. Apesar da crise do império ultramarino português, a questão que então se coloca é o que fazer com a enxurrada de riquezas que ainda chegam ao reino e lá não ficam.

Francisco Manuel de Melo afirma que ao dinheiro não faltava mais nada, apenas falar. Assim, dá voz às moedas (um português fino, um dobrão castelhano, um cruzado moderno e um vintém navarro) presas na gaveta de um avarento. Em uma noite qualquer, as moedas começam a conversar e relembrar o seu passado, cheio de vicissitudes ao passar de dono para dono, até o momento em que terminaram em poder de um maldito avarento, levando uma vida aferrolhada nas malditas masmorras das gavetas, sepulturas de dinheiro ainda vivo! Marx diria, dois séculos depois, capital em alqueive, ou capital potencial. Devemos lembrar que naquele momento era mais saudável aos autores dar voz às moedas e aos seus protestos, que aos seres humanos do Reino português. Ainda assim, essa obra só foi publicada postumamente em 1721. Como diz o cruzado, apesar do desperdício de uns, e de outros que nos enterram, para que ninguém nos goze, "...nós somos a melhor invenção do mundo, Falai-me no que vale e no que descansa estar um cidadão na sua cama dormindo regalado, seguro e quieto, em noite tempestuosa de dezembro e, a troco de uma pequena migalha de prata e ouro, estar o miserável pescador lutando com a morte duas marés inteiras, para lhe trazer de madrugada o guloso besugo ou o pintado salmonete que lhe vem como pintado para o jantar à sexta-feira!". "Diz ainda: "...sem interesse, quem passaria trabalhos? E, sem trabalho, como se venceriam as dificuldades de que o mundo é composto?" E mais: "Pelo que eu sou de parecer que o erro que hoje se padece na monstruosidade de que somos caluniados não consiste na desigualdade com que a sorte nos repartiu, senão no errado uso que aqueles que nos possuem, ou aqueles que nos desejam, fazem de nossa presença ou ausência. Porque se os ricos gastassem e os pobres merecessem, brevemente viriam todos a conseguir a igualdade de conforto. Mas que quereis vós que seja, se uns não fazem senão guardar ou desperdiçar e se outros não fazem senão invejar e desmerecer?"

As passagens nos lembram ora Mandeville, ora Adam Smith, e até mesmo Marx, assim como outros autores são lembrados quando um vintém fala dos seus diferentes e inúmeros usos, em sua peregrinação pelo mundo: "Vim e tomei a várias partes com um curso velocíssimo". Considerando que Bodin já no final do século XVI formulara as idéias que produziriam alguns séculos depois a teoria quantitativa da moeda, não é de estranhar que o autor, na voz do cruzado, nos fale do valor do dinheiro, da necessária igualdade entre os homens em uma sociedade mercantil, e do uso do dinheiro como meio e não como fim: "É o dinheiro o meio universal de todas as coisas temporais, porque por ele todas se alcançam e facilitam. Mas, sendo tão bom por ser meio, é muito mal para ser fim. Porque, quem só como fim o possui, esse, sim, terá dinheiro, mas nada tem por ele; e tanto lhe importará uma caixa de ouro como uma caixa de areia, se desse dinheiro não usa nem dispõe". Assim, as moedas criticam do início ao fim do apólogo a retirada do dinheiro de circulação através do seu aprisionamento ou, naqueles tempos, do seu literal enterro. E nosso autor também trata das questões morais, dentro da tradição de então: na voz experiente de um português fino (moeda que valia sete mil réis) faz virulenta carga contra os corruptos que roubam a república miseravelmente, contando a célebre anedota de uma audiência ministerial. Em audiência pública no paço real, o solicitante diz ter visto naquela manha, quando o ministro descia da mula nas escadas do paço, cair da sua algibeira uma bolsa, cujo achado estimava mais que um tesouro... Já na voz de um vintém, uma moeda de pouco valor, faz uma virulenta diatribe contra a guerra.

Duarte Ribeiro de Macedo, em Sobre a introdução das artes, discute em um pequeno texto com duas partes de nove capítulos cada uma, a questão da saca (saída) do dinheiro do reino. Evidentemente, isso se deve aos excessos das importações sobre as exportações. Esta é a mesma situação vivida pela Espanha. Comparando a Espanha com a França, Macedo nos lembra Antonio Serra, ao dizer que a França sem minas está riquíssima, enquanto a Espanha com minas "recebe frotas carregadas de prata todos anos, e está sem gente e sem dinheiro, e necessita de que a Europa toda se arme para a defender da frança. Isso não é coisa que a história nos deixasse escrita, é um fato que temos diante dos olhos". Para uma melhor análise da Espanha, Macedo recorre ao notável pensador espanhol D. Sancho de Moncada, catedrático de Escritura em Toledo e autor do tratado Restauración política de España, oferecido em 1619 a Felipe 11. Para esse autor a decadência econômica da Espanha foi conseqüência da entrada de metais preciosos vindos da América, tornando o país uma economia de importação, com a ruína das manufaturas e o grande empobrecimento do país. Macedo, diplomata em Madri e em Paris, onde terminou de escrever o seu livro em 30 de abril de 1675, foi observador privilegiado da política mercantilista de Colbert...

Para Macedo, o reino português passou por três tempos. Antes da chegada à Índia, depois quando Portugal tornou-se senhor do comércio dela, e no momento em que escreve, após a sua perda. No auge do comércio com a Índia, Portugal sofisticou-se e era um dos mais ricos remos e Lisboa a mais rica praça do mundo, exportando muito mais do que importava, recebendo grossas somas em dinheiro. Depois da perda da Índia, Portugal continuou necessitando de todas as coisas que introduziram as riquezas da Índia, sem as suas riquezas para pagá-las. Como resolver esse problema? Não será com proibições à saída do dinheiro, como mostra o insucesso do bulionismo espanhol. O único meio para impedir a saída do dinheiro do Reino é introduzir nele as artes (manufaturas), basicamente a indústria têxtil... O autor defende a facilidade dessa introdução, que deverá ser acompanhada pela proibição rigorosa da saída dos materiais que se podem lavrar neles (matérias-primas). Em linguagem atual, pode-se dizer que Macedo defendia a manufatura, com a produção de mercadorias com maior valor adicionado, sem, contudo, transformar o país em uma autarquia. Para isso seriam necessários incentivos, como faziam a França, Alemanha, Inglaterra, Holanda, além de Veneza e Gênova.

O autor ainda dá um depoimento pessoal, fazendo referência a D. Francisco de Melo: "Deixo para o fim da primeira parte deste discurso o advertir que os estrangeiros entendem tão bem a perda que terão com a introdução das artes neste Reino que, mandando eu de Paris um mestre de chapéus de castor a Lisboa por ordem do Marquês de Fronteira, o cônsul da França lhe ofereceu em Lisboa o perdão de um delito que tinha na França e uma pensão de mais de 200 mil réis, com o que o fez tornar a França. E procurando D. Francisco de Melo em Londres mandar um tear de meias de seda, não pôde vencer as dificuldades e proibições que o impediram."

No capítulo II da segunda parte, Macedo faz uma detalhada descrição de todo o processo de circulação do dinheiro, das artes aos mercadores; "... dos mercadores a todo o gênero de ofícios e mãos por onde correm os materiais que põe em obra a arte"; destes aos lavradores "... pelo preço dos frutos da terra para sustento de todos"; dos lavradores aos senhores de fazenda; e das mãos de todos, via tributos, ao patrimônio real. Daí transforma-se em ordenados, sustento de soldados, armas, fábricas de naus, edifícios, fortificações etc: "Quando esta circulação do dinheiro se faz no Reino, serve de alimentar o Reino; mas, quando sai do Reino, faz nele a mesma falta que o sangue quando sai do corpo humano". Mas a perspicácia do autor é ainda maior, dando um tratamento à questão onde identificamos fortes traços de modernidade em suas palavras: "Suponhamos que um príncipe entesoura todo o dinheiro que lhe tributa e rende o seu Estado; é certo que em poucos anos o esgota, e que faltará aos pobres e ricos com que o tributar e alimentar-se. Esta é a razão por que os políticos aconselham aos príncipes que, não tendo em que gastar, e não saindo de minas o seu tesouro, fabriquem palácios: porque, para o dinheiro entrar nas mãos do príncipe, é necessário que saia."

Mas o autor prossegue em sua exposição chamando a atenção para as qualidades específicas do Reino. Primeiramente, Portugal seria o caminho natural de todo o dinheiro que corre da Espanha para toda a Europa. As artes produzidas em Portugal teriam menor preço naquele país, ainda mais considerando os gastos com fretes, câmbios, seguros, piratas e riscos etc. Nos termos de hoje, o autor poderia até falarem integração regional A segunda utilidade específica é o porto de Lisboa, considerado ao lado do porto de Constantinopla um dos dois melhores do mundo. Mas, depois da descoberta do novo mundo, Constantinopla é o melhor porto do Mediterrâneo, mas Lisboa o melhor porto do mundo. Enfim, um autor antenado no que hoje se chama logística! Macedo ainda exemplifica com o porto de Amsterdã, uma cidade coberta de neve oito meses ao ano, com seus canais e portos gelados: "Mas todos esses defeitos naturais supriu a indústria e o trabalho dos homens, de sorte que, com as artes e o comércio que tem, se fez porto célebre e riquíssimo." Para o autor, como mostram também os exemplos de Londres e Paris, mais que ser cabeça de um grande Reino, ou ter um grande porto, o que as faz grandes e populosas são as artes.

Antônio Castro, em As doutrinas económicas em Portugal na expansão e na decadência (Séculos XVI a XVIII), publicado em 1978, nos lembra que a mais importante obra de Macedo ficou inédita por 137 anos, só tendo sido publicada em 1813 na revista O investigador portuguêz, editada em Londres. Após uma reedição em 1817,0 autor só foi novamente publicado em 1924, na clássica antologia de António Sérgio. Castro afirma que enquanto José Calvet de Magalhães considera Duarte Ribeiro de Macedo o mais consciente e o mais completo mercantilista português, Carlos da Fonseca, no prefácio ao estudo de Frederico Laranjo, considera que Macedo foi o primeiro autor a pôr em causa as práticas mercantilistas. Para Castro, Macedo não é nem o representante dos interesses da burguesia mercantil português, nem o paladino da via revolucionária da formação de uma burguesia industrial. Segundo António Castro, Duarte Ribeiro de Macedo escreveu esse texto com interesses práticos, pois nesse momento estava em preparação uma política oficial de incentivo à indústria conduzida pelo Marquês de Ericeira, bem como medidas para restringir certos consumos e eliminar o desequilíbrio do balanço de pagamentos. Posteriormente, consolida-se a dominação britânica, com o Tratado de Methuen, ao mesmo tempo em que e descoberta do ouro no Brasil permitiu que não fossem enfrentados os profundos desequilíbrios estruturais da economia portuguesa. Na verdade, suas propostas destinam-se a combater dificuldades imediatas, através de medidas pontuais.

Estes dois pequenos livros, escritos antes da assinatura do Tratado de Methuen, de 1703, em que um Portugal agrícola se submete à Inglaterra já em processo de industrialização, e um século antes da infrutífera tentativa do Marquês de Pombal em defesa dos interesses portugueses contra o império inglês, demonstram que o debate entre os defensores do interesse nacional, contra a elite cosmopolita defensora dos interesses econômicos externos, tem uma longa história. No século XVII, como hoje no século XXI, embora os protagonistas sociais sejam diferentes, as questões de fundo ainda são as mesmas. O que fazer com a riqueza nacional? Como ampliá-la e como melhor distribuí-la? Certamente, não é com o entesouramento, mas sim com o emprego do dinheiro para o desenvolvimento das artes, das manufaturas e da indústria. Considerando os problemas e as palavras atuais, é fundamental a superação de um modo de desenvolvimento baseado na riqueza financeira, que busca a valorização do capital sem sequer passar pelo processo produtivo, e nos levou à atual crise econômica de dimensões imprevisíveis.

João Ildebrando Bocchi

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